Louis Jou — meu primeiro redesenho tipográfico.

Documentando o processo de se apaixonar durante o processo.

Frequentador de sebos, sempre gostei de comprar livros antigos por sua aura nostálgica. Após a paixão pela tipografia passei a procurar pelos estrangeiros mais antigos possíveis, impressos em prensa de madeira, chumbo, as variações de ornamentos, acabamentos gráficos, costuras e colas ressecadas, e claro, a maior quantidade de variações de estilos tipográficos.

Até então, sempre foi uma apreciação e observação tátil e visual: erros de impressão, falhas das tintas (tanto sobras quanto falta), força da prensa sobre os papeis, exageros ou falta de espacejamentos entreletras e entrepalavras entre outros atributos que de certa forma sempre me levaram a imaginar as dificuldades e facilidades do contexto histórico, material, tecnológico, financeiro e geográfico do livro adquirido.

A decisão de começar

Em 2015 comprei um livro impresso em francês, que me chamou muita atenção por sua variação tipográfica, mas principalmente pelo cuidado com as capitulares e a grande quantidade de ornamentos. Considerei um excelente exemplo no cuidado tipográfico e consistência na mancha tipográfica.

Porém, sem lembrar dos motivos foi apenas em junho de 2021 que resolvi revisitar o livro e me encantar novamente. A decisão veio nesta data de que eu começaria um projeto de redesenho dos caracteres como forma de praticar e aprofundar meus conhecimentos e técnicas tipográficas.

Meu nível de exigência? muito baixa ou nada além que passasse de diversão.

O que mudou com a busca histórica

A princípio eu não estava muito interessado no aprofundamento histórico, meu objetivo era apenas escanear as páginas, redesenhar um conjunto de caracteres, analisar algumas coisas e parar por ali mesmo. Engano meu.

Traduzido pelo Google:

O texto deste segundo volume de suas obras completas foi revisado por André Maurois. As madeiras originais foram desenhadas e gravadas por Louis Jou. A edição foi impressa em nove de dezembro de mil novecentos e cinquenta nas prensas da Coulouma Empreinteur S.A. em Paris e consiste em cem exemplares em Hollande Van Gelder numerados de 1 a 100 {…}

Abençoado seja colofão: os textos são de André Maurois, impresso em 1950, em prensa de madeira por Louis Jou em uma gráfica de Paris. Minha animação com o projeto aumentou mais.

Pesquisando sobre Louis Jou

A princípio fui pelo básico: Google. Confesso que por pré-conceito imaginei que não teria resultados, não conhecia o tipógrafo e os pensamentos entre tantos foram: muitos tipógrafos se destacaram na época, mas não todos; muitas gráficas compravam tipos de outros designers de tipo, pode ser isso; não da para documentar todas as informações do passado, será difícil e sem muita relevância.

Logo me deparo com um link do Wikipedia: https://fr.wikipedia.org/wiki/Louis_Jou Tipógrafo, pintor, gravador e ilustrador, nasceu em 1881 na Espanha, e morreu em 1968 na França.

Entre os maiores tipógrafos do século, o lugar de Louis Jou é excepcional. Ele é o único entre seus pares que projetou e produziu uma obra inteiramente por ele mesmo.

Espantei!

Tendo conciliado o rigor nórdico e a dureza espanhola, resta o fato de que a forte personalidade de Jou — que não era discípulo de ninguém — o liberta de toda influência e lhe permite impor por sua vez uma obra original, tanto na arte tipográfica quanto em suas criações pictóricas. Este catalão naturalizado francês em 1927 foi um criador de livros cuja influência, no final de uma carreira exemplar de mais de meio século, foi uma das mais determinantes na evolução do livro contemporâneo.

Certo, me enganei feio, já estava admirando o tipógrafo, minha animação e agora respeito com o projeto já havia aumentado mais, Louis Jou era um “monstro”.

Existe uma Fundação Louis Jou, com todo um repertório histórico sobre ele, um museu e seus artefatos e que é possível visitar. Impressionante. Se quiser dar uma olhada: https://www.fondationlouisjou.org/ e https://www.lesbauxdeprovence.com/en/activites/art-et-culture/louis-jou-foundation/

Mas seu grande sonho sempre foi desenhar e gravar suas próprias fontes. Em 1921, ele trouxe suas primeiras fontes da Espanha, com as quais produziu Le Prince , sob a bandeira Jou-Bosviel,{…}

Em 1925, ele finalmente montou esta oficina na rue du Vieux-Colombier 13, perto de Saint-Germain-des-Prés e do Quai-aux-Fleurs, sua primeira acomodação parisiense. Lá, produziu incansavelmente esses esplêndidos livros até 1939, percebendo então o que ninguém havia feito antes dele: desenho e gravura de personagens, tinta, composição; mas também, desenho e gravura de ilustrações, prensagem, decoração de encadernação, ele geralmente se envolve em tudo. Ele é de fato o Arquiteto do Livro descrito por André Suarès.

Louis Jou era um profissional completo, comecei a admira-lo cada vez mais.

Ponto de atenção e dificuldades

Neste momento, eu já havia iniciado o projeto paralelamente as investigações históricas dele.

Livros: pesquisei sobre ele em alguns livros de tipografia que possuo, e infelizmente nada menciona ele, confiei que iria achar em Letter Fountain, The Ultimate Type Reference Guide de Joep Pohlen, mas sem sucesso.

Email: enviei um email disponível à fundação Louis Jou informando sobre meu projeto e no meu interesse a mais informações, porém, sem sucesso de resposta.

Tipografia: no site da fundação, mostra diversas fontes produzidas por Louis Jou, porém, apenas uma delas foi redesenhada por um designer chamado Thierry Gouttenègre, no qual eu não tentei contato (escrevendo agora, imagino que eu deveria tentar contacta-lo). A fonte redesenhada é de uso exclusivo da própria fundação.

Mercado tipográfico: pesquisei diversos sites de vendas de famílias tipográficas, porém, nenhuma menciona Louis Jou.

O livro: A coleção completa é formada por 16 volumes, eu possuo apenas o volume 2. Ter acesso aos outro volumes seria interessante para comparação, e também buscar caracteres que foram difíceis de achar no volume 2, algo que só percebi ao longo do processo.

Redesenhando

Apesar de não ter todas as informações das quais eu gostaria, procurei encarar como oportunidade e ver que possuía o que precisava, um livro de 500 páginas com caracteres regulares, itálicos, capitulares, versaletes, numerais old style… e muita paciência. Meu nível de interesse aumentou muito como o respeito pelo type designer, principalmente ao imaginar que poderia ser uma tipografia nunca redesenhada; eu estava me divertindo e minha exigência não aumentou a um nível profissional, o aprendizado e diversão continuaram a ser o maior interesse.

Folheei inúmeras vezes o livro em busca do maior número de caracteres (claro que alguns aparecem muito mais que outros), marquei as páginas e escaneei. Escaneei mais de 100 páginas, cometi diversos erros nas escalas, fiz os ajustes necessários e segue o jogo. A princípio esta etapa foi mais fácil e me rendeu um bom tempo analisando, comparando e redesenhando os caracteres até definir um padrão. Comecei pela letra n, m, r, h, o, ajustando as dimensões horizontais e verticais, alturas e largura do corpo, altura de x, ascendente, descendentes, tudo como manda o figurino e a primeira mancha e ritmo começaram a surgir e segui em frente.

Cometi vários erros e equívocos onde tive que revisitar diversos caracteres e realizar os ajustes necessários, mas graças a algumas ferramentas do Glyphs que otimizam o processo, me poupou um certo tempo.

Capitulares

Algo que me deixou maravilhado foi o cuidado com as capitulares, o tempo investido na impressão de milhares de exemplares em 2 cores, o nível de detalhe em um tamanho tão pequeno ( 26 x 26mm ) faz jus as descrições artísticas de Louis Jou. As letras não correspondem a caixa alta do texto; fica claro a padronagem nos ornamentos e a sacada em rotacionar o ornamento na letra V.

Não pude deixar de me aventurar no redesenho tanto no Glyphs quanto na xilogravura, porém, em vez de madeira usei linóleo no tamanho de 19cm e mesmo reproduzindo em uma escala muito maior, enfrentei muita dificuldade. Apesar de conseguir reproduzir as capitulares no Glyphs, enfrentei diversas dificuldades como a quantidade de pontos, exportação, peso, escalabilidade entre outras coisas que estou deixando para outro momento.

Outro gligos

O livro é repleto de caracteres, diacríticos, símbolos e etc., mas não tem tudo. Essa foi uma das surpresas que me deparei durante o processo, consequência da minha ingenuidade que me levou a mais pesquisas tipográficas. Encontrei diversos artigos e livros e acabei me aprofundando mais sobre diacríticos em diferentes línguas.

Letras como K, K, k,Y, entre outras, foram um certo desafio achar e me tomaram bastante tempo, mas neste momento eu já havia decidido que por mais que houvesse modularidade nas letras permitindo criar os caracteres e símbolos faltantes, eu procuraria esgotar a busca por elas no livro ( ter outros volumes neste momento me seria bem útil). Símbolos como ‰ não havia necessidade de tal rigor já que é praticamente igual a %.

Seguindo e decidindo

Até agora 490 glifos: 334 regulares, 138 itálicos e 18 capitulares.

É praxe e recomendável sempre definir bem os objetivos do projeto e ter clareza do processo (meu objetivo estava claro, o processo nem tanto), buscar referências e documentações de outras experiências com revival tipográfico é necessário (recomendo a leitura deste: https://typetype.org/blog/creation-of-tt-marxiana/).

Com o objetivo principal eu fiquei satisfeito, estudei, pesquisei, me aprofundei, pratiquei. O processo me surpreendeu muito, a gente desenha um punhado de letras para determinado projeto, ajusta um lettering, manuseia a tipografia no layout, lê infinitos livros, participa de cursos e conferencias, mas formar um sistema é diferente, claro que seria diferente.

Um discurso que me ajudou a seguir tentando, foi do type designer Marconi Lima em 2015 (se não me engano) no DiaTipo SP, uma das palestras que mais me marcou, ele falava de forma simples sobre o processo (não técnico) de uma de suas fontes (Adriane Text, se não me engano), as horas trabalhadas de madrugada, o refino, os ajustes, os anos. Ser surpreendido durante a busca histórica sobre Louis Jou foi imersivo na produção também, tecnicamente e filosoficamente.

O projeto não parou, mas deu uma bela estacionada, principalmente pelos compromissos pessoais e profissionais. Reconheço diversos erros que precisam ser revisitados e ajustados, kernings para serem eternamente corrigidos, curvas para serem lapidadas, códigos para serem criados, dedicar-me aos sobrescritos, subscritos, versaletes, itálicos e o céu é o limite. Até agora, me diverti muito.

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